segunda-feira, 5 de julho de 2010

CANGACEIROS, FANÁTICOS E O PODER DOS CORONÉIS

Selma M. de Queiroz

Resumo

O presente artigo trata de algumas formas de resistência e de reação dos camponeses em especial os cangaceiros e fanáticos, no período republicano, contra a prepotência dos grandes proprietários de terras que sustentavam a riqueza e o poder à custa da opressão, da marginalização política e da espoliação das camadas pobres da população brasileira.

Palavras chave: República, Cangaceiros, fanáticos, camponeses, latifundiários.



O período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX foi marcado por uma série de crises de ordem econômica, ideológica, de autoridade, que foram expressas em rebeliões espalhadas por inúmeras áreas do interior do Brasil, abrangendo principalmente os habitantes do campo.
Por volta de 1900, cerca de 60% da população ainda vivia na zona rural e eram em grande parte, camponeses, os que constituíam a parcela mais explorada e oprimida da população, aqueles que nada possuíam e tinham algo a reivindicar, ainda que não soubessem formular claramente essa reivindicação. Esses camponeses trabalhavam nas terras dos grandes proprietários fazendeiros pelo sistema de parcerias ou mediante pagamento de salários. Em algumas áreas, como as cafeeiras paulistas, a situação desses trabalhadores não era tão ruim o que não se poderia dizer o mesmo do norte do Brasil, em que os seringueiros embrenhavam-se pelas florestas enfrentando todos os perigos para recolher a matéria-prima da borracha, o látex, para atender ao mercado internacional e dessa riqueza os seringueiros nada viam, ao contrário, estavam sempre endividados com os latifundiários.
Os coronéis imperavam nas áreas rurais, principalmente no Nordeste. Especificamente na Bahia, os coronéis do cacau se transformaram em personagens políticas e da literatura nacional. No entanto, os milhares de trabalhadores só conseguiam ter uma vida melhor quando se transformavam em jagunços desses coronéis .
Portanto, a situação dos trabalhadores rurais nada mais era do que uma vida de miséria. Caso reivindicassem qualquer direito ou benefício, eram despedidos. Com um pouco de sorte, encontravam outro fazendeiro que os deixava ocupar um pequeno pedaço de terras, para serem novamente oprimidos e injustiçados.
A resposta vinha rápido através das balas dos jagunços ou das forças consideradas legais, caso esses camponeses se revoltassem contra qualquer insatisfação.
Com relação às leis da República, maiores e alfabetizados tinham direito ao voto. Como a maioria dos camponeses era analfabeta, o direito de voto não lhes era concedido, o que na verdade, pouco adiantava o direito de votar nas zonas rurais uma vez que esses, considerados votos de “cabresto” só seriam possíveis, caso os coronéis estivessem de acordo. As eleições eram por eles controladas. Como o voto era aberto, isto é, não era secreto, os coronéis podiam saber se seu “curral eleitoral” estava obedecendo, caso contrário o “traidor” iria sofrer as conseqüências que na maioria das vezes eram atos de violência.
Dessa forma, os camponeses não tinham quase nenhuma esperança de melhoria de vida. Bastava caírem as vendas externas ou advir uma seca prolongada, tudo se transformaria em fome, miséria e desespero, causando emigração em larga escala.
Contra a fome e a miséria que aumentavam com a seca, manifestam dois tipos de reação por parte do enorme número da população pobre que vivia sem nenhuma assistência do governo e à mercê dos coronéis:
a) a formação dos grupos de cangaceiros que lutam de armas nas mãos assaltando fazendas, saqueando comboios e armazéns de víveres nas próprias cidades e vilas;
b) a formação de seitas de místico-fanáticos em torno de um beato ou conselheiro, para implorar dádiva aos céus e remir os pecados, que seriam as causas de sua desgraça .
Canudos, Juazeiro, o Contestado e um sem número de episódios semelhantes mais restritos, como: Pau de colher, Caldeirão, Pedra Bonita, foram alguns dos movimentos das massas dos trabalhadores do campo que eclodiram em diferentes pontos do Brasil ao lado do cangaceirismo, que se prolongou até a década de 40.
Para nossa história, esses fenômenos têm sido vistos como extra-históricos. Os livros didáticos usados pelos professores nas escolas trazem muito pouco esses acontecimentos e quando trazem não são em sua essência, mas sim a eclosão e a motivação das lutas num falso pressuposto de que elas têm no misticismo ou messianismo sua origem e seu fim.(Grifo meu). “Banditismo’ e “fanatismo”, são expressões que os resumem, eliminando-os dos acontecimentos que fazem parte de nossa evolução nacional, de nossa integração como Nação, de nosso lento e deformado desenvolvimento econômico .
Mas seria mesmo, simples criminosos esse grande número de pobres do campo que se rebelavam nos sertões durante um tão largo período da História do Brasil? Será que poderíamos chamá-los de “retardatários” da civilização como os qualificou Euclides da Cunha? Evidente que não.(FACÓ,1965.p.16) . Penso ser muito mais fruto de uma desigualdade social. (Grifo meu).
Os surtos de cangaceirismo e fanatismo tiveram causas internas e externas, dentre outras coisas. Como já foi mencionado no início desse artigo, o monopólio da terra nos reduziu a um atraso cultural, encarcerando maciçamente as populações rurais da nossa hinterlândia, a que chamamos sertão, estagnada por quatro séculos.

CANGACEIROS E FANÁTICOS

Não podia o homem continuar passivo diante de tanta adversidade. Cruzar os braços diante de uma série de coisas que se deslanchavam sobre eles. Seria desumano demais. Euclides da Cunha já compreendera que:





O homem do sertão [...] está em função direta da terra. Se a terra é para ele inacessível quando possui uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as suas energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador das piores torpezas, que fazer senão revoltar-se? Pega em armas sem objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é seu .


Os homens da classe dominante sentem-se assustados sem saber explicar porque ele se revoltou. Humilde e cordato como sempre fora, nem ao menos tirava da cabeça o seu chapéu de couro ao falar com o senhor, (o chapéu de couro era objeto de grande importância para os cangaceiros. Para eles, era no chapéu que estava a sua força), agora toma de uma arma e torna-se cangaceiro, formando um grupo, um bando junto a companheiros de infortúnio.
As tentativas de explicação para os fatores do cangaço, foram datadas desde o início do fenômeno. Opiniões de alguns autores divergiam entre si, ao estudarem o processo em sua plena florescência. Euclides da Cunha atribuiu ao fator racial, “o meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do Vasa Barris ao Parnaíba, no ocidente”, e ao que chama de “estigmas degenerativos de três raças” Euclides da Cunha baseia-se entre outros autores em Nina Rodrigues. As teses deste baiano podem ter sido fonte de opiniões errôneas acerca do cangaceirismo e o misticismo sertanejos.
Nina Rodrigues afirmava que “a criminalidade do mestiço brasileiro está ligada às más condições antropológicas da mestiçagem no Brasil”. A mestiçagem, nesse caso constituía um fator determinante para interpretação cultural.
Foram vários os autores nordestinos que sem dar atenção às causas sociais, usam uma explicação, quem sabe, a mais fácil- a mestiçagem- que nesse momento no nordeste, era considerado fator relevante e removível. Sendo assim, o cangaço e fenômenos correlatos jamais teriam remédio.
Muitos outros autores foram influenciados sob este ponto de vista. Lourenço Filho, por exemplo, depois de uma visita feita ao Cariri na década de 1920, considerava que “certas condições biológicas levam ao banditismo” . E no caso do Juazeiro, do padre Cícero, visto por ele como uma anomalia dizia: “os remédios estão aos olhos de todos, e eles se resumem em poucas palavras: em maior liberdade política aos escravizados estados do Norte, em distribuição de justiça e educação”.
Haveria, pois condições de haver liberdade política, instrução e educação popular, se o interesse do grande proprietário de terra era manter a população na total escuridão? Obter braços servis era o lema dos coronéis em detrimento às cabeças pensantes.
Xavier de Oliveira (1932), diz textualmente: “o homem honesto e trabalhador de outrora é um bandido agora, por causa de uma questão de terra”. Acrescentava quanto às condições de trabalho: “no Cariri, em certas cidades, há o que se chama de trabalhadores. Centenas de homens, reunidos em praça pública, enxada a ombro, prontos para o trabalho. Chega o fazendeiro, escolhe os mais robustos (é como se escolhesse bois para o corte) e os leva à roça. Os outros, em número de centenas, ficam sem trabalhar e sem comer, eles, suas mulheres e seus filhos” .
Estes homens forçosamente tinham de se rebelar. Estando sem terra, sem ocupação certa, explorados brutalmente, iriam se revoltar qualquer que fosse a dosagem do seu sangue, ou sua origem, o meio físico que influenciasse sobre o seu organismo. Ao mesmo tempo Oliveira concluía pedindo ajuda do exército para exterminar o cangaço. Essa foi a luta durante toda sua vida. Devia instalar desde Pajeú de Flores até Riacho do Navio, dos sertões de Pernambuco ao Cariri, onde nasceu, regiões militares e tudo estaria resolvido. Para outro nordestino, Gustavo Barroso, o cangaço seria extinto nos sertões com estes remédios: comunicações, transportes, instrução e justiça.
Nota-se que predominam causas profundas em se tratando de algumas das inúmeras opiniões a respeito do cangaço como dos surtos do “fanatismo”. Dentre outras causas, podemos observar: ausência de justiça, analfabetismo, precariedade de comunicações e transportes, baixos salários.
Dessa forma, entendemos que não é só no monopólio da terra que reside a matriz do cangaço; era em todo atraso econômico, no isolamento do meio rural, no imobilismo social, na ausência de iniciativas outras que não fossem as do latifundiário.
E em meio a esse caos, bandos armados independentes formavam-se no sertão. Eram os cangaceiros: geralmente ex-jagunços que viam no banditismo um meio de vida. Sempre saltando de vila em vila, andavam armados em bando pelo sertão nordestino nas primeiras décadas do século XX. Tinham suas próprias leis e regras de conduta. Eram temidos pelas pessoas e espalhavam medo por onde passavam. Enfrentavam com freqüência as forças policias do governo, usavam roupas e chapéus de couro, uma vez que andavam muito pela caatinga e este tipo de vegetação era provido de muitos espinhos e as roupas proporcionavam-lhes uma certa proteção.
O cangaço, banditismo típico do sertão nordestino, mais exatamente o cangaço da época de Virgulino Ferreira da Silva – Lampião foi definido nesse período como se referindo ao bandido que vive debaixo da canga, o complexo de armas sobrepondo-lhe ao corpo, bem como referir-se a uma maneira de vida e ação independente na qual o cangaceiro estaria subordinado apenas ao seu bando. Não que o cangaço fosse uma resposta à dominação dos coronéis. Muito ao contrário, conforme demonstrou Graciliano Ramos, alianças vantajosas foram firmadas entre Lampião e os mais poderosos coronéis da época. Vejamos:

[...] a relação cangaceiro-coronel mostrava-se vantajosa para as duas partes: ganhavam os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na caatinga e ganhavam os proprietários, que se fortaleciam e engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso .


Representante emblemático deste ciclo, Virgulino Ferreira da Silva, por volta de 1920, tornou-se o chefe do cangaço, reinando até 1938 quando morreu junto à sua companheira Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, morre em Angico, sertão de Sergipe. Já em 1940, com a morte de seu suposto vingador, Cristino Gomes da Silva Cleto, o cangaceiro Corisco, finda o ciclo geral do cangaço.
No que se refere à memória coletiva, Lampião se sobressaiu como uma espécie de protótipo dos cangaceiros, sobrepondo-se aos outros do seu tempo. Entretanto, deve-se atentar para o fato de que o cangaço não se resume a Lampião, como comumente se confunde. A explicação para isso é que Lampião era dotado do espírito de liderança e esta era reconhecida no bando, por se mostrar valente e habilidoso nos combates e o seu exemplo estar sempre acima da palavra.
Do ponto de vista das relações de cangaço com a sociedade de seu tempo, é bom que se leve em conta a sabedoria do chefe do bando quando construiu, logo que possível, relação com jornalistas e fotógrafos da época, dando-lhe algumas imagens favoráveis. Diferentemente de cangaceiros famosos, tais como: Jesuíno Brilhante (1844-1879), Antônio Silvino (1875-1944), Lampião teria se empenhado na construção da sua própria imagem pública. Mesmo sofrendo intensas perseguições de inimigos pessoais e das forças policiais, ao contrário daqueles dois chefes de cangaço que não se deixavam fotografar, ele resolveu dar visibilidade a si e ao seu bando através de imagens fotográficas e entrevistas.
Conforme Marc Ferro, a fotografia é um inventário temático onde se encontra.
“[...] enumeração de motivos–objetos representados, papéis sociais postos em cena, produção e recepção culturais” . Com efeito, já sabemos que os fotógrafos realmente interferem e que o seu olhar não é “inocente”. De Paula, em seu livro surpreendente sobre a Guerra de Imagens na Revolução Constitucionalista em São Paulo mostra como em torno de uma fotografia existem marcadores visuais, e que além da subjetividade do fotógrafo “[...] é preciso considerar a visão do próprio fotografado, que pode está exprimindo de forma consciente ou não, seus anseios e sua auto-imagem idealizada” .
E assim, Virgulino Ferreira da Silva, usando de sua sagacidade e defendendo a liberdade do seu bando, tornou-se o mais famoso rebelde da região. Justiceiro para alguns e bandido para outros.

FANÁTICOS

No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia só podia ter um caráter religioso, místico, que se convencionou chamar de fanatismo. Sob esta denominação, englobaram-se os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço.
Fanáticos foram denominados, adeptos de uma seita ou misto de seitas, que não fosse religião dominante. Só que a seita por eles abraçada, fortemente influencida pela religião católica, que lhe dá o substrato, era sua ideologia. Como toda ideologia, um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos, que traduziam suas condições materiais de vida, seus interesses, seus anseios de libertação e seus próprios métodos de luta, justificativam-nos também.
Uma das características diferenciais do “fanático” e do cangaceiro é que o cangaço é desde o início apontado como sendo um elemento ativo, e o misticismo surge como um elemento passivo, manifestando sem nenhum fim agressivo. Entretanto, quando o grupo místico se formava em torno de um beato, monge ou conselheiro, sua tendência era adotar métodos de ação que paulatinamente iam entrando em conflito com a comunidade sertaneja.
Desde seu aparecimento ostensivo, esse grupo passa a ser hostilizado pela religião dominante. O que só faz aumentar cada vez mais o número de adeptos e a nossa corrente.
Com a propagação dessa onda de fanatismo, de norte a sul do país, revela uma separação entre a ideologia das classes dominantes e camadas médias urbanas e a ideologia dos setores das classes empobrecidas da população rural. Mas o “fanatismo” era o elemento da solidariedade grupal à reação contra a ordem dominante.
O fanatismo, elemento de luta dos trabalhadores, vem aprimorando a modalidade de reação dos pobres do campo. O surgimento e a forma como o cangaceirismo foi enfrentado, acreditamos ser o cangaço a primeira cópia e talvez a ruína e a decadência do latifúndio.
Desde que ganha influência sobre massas consideráveis da população, o “fanatismo” desempenha um papel ativo, impulsionador e emancipador local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se imaginar a queda do conceito daquela sociedade em que o poder do grande proprietário de terra era incontrastável, até mesmo uma forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo à frente para a emancipação de grande parte da população, especialmente a dos trabalhadores do campo. Isso mostrava um grande exemplo de insubmissão. Um estímulo às lutas.
O cangaço precedeu aos grandes ajuntamentos de “fanáticos” que reunidos em torno de um líder religioso, tiveram seus pontos principais em Canudos e Contestado.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Euclides. Os Sertões, 13ª ed.p.141
DE PAULA, Jesiel. 1932: Imagens Construindo a História. Campinas/Piracicaba. Editora da UNICAMP/ Editora da UNIMEP, 1998, p.33-37.
FACÓ, Raul. Cangaceiros e Fanáticos. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro 1976.p.15

¬¬¬¬¬___________-Cangaceiros e Fanáticos. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro 1976.p.1-____________Cangaceiros e Fanáticos. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro 1976.p.37
FERRO, Marc. Imagem.In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jaques. (Dir.). A Nova História. Tradução de Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra: Almedina 1978, p.291
FILHO, Lourenço. O Juazeiro do Padre Cícero. 2ª ed. São Paulo, s.d.
RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas, Quadros e Costumes do Nordeste. São Paulo, Martins Editora, 1962, p.126.
PERROT, M. Os excluídos da História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988
OLIVERA, Xavier de, O Exército e o Sertão. Rio, 1932. – Beatos e Cangaceiros. Rio, 1920

Um comentário:

  1. A Republica modoficou cenarios tanto nas cidades quanto nas zonas rurais.Provocando uma serie de revoltas e manifestações de resistencias da população e o cangaço acompanhado por um "fanatismo" religioso que nada mais eram do que a solidariedade dessas comunidades que encontravam na religião uma forma de resistencia. o ponto cuminante deste movimentos foram os massacres de Canudos e a Guerra do Contestado.

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